quinta-feira, 17 de junho de 2010

Natália

Minha vida mudou depois que minha princesinha veio ao mundo. Natália, minha primeira e única filha é portadora de Síndrome de Down, distúrbio genético, mongolismo, que afeta parcialmente algumas pessoas. Eis a minha coisa fofa, minha razão de viver, após um trágico acidente aéreo que levara minha esposa Eleonora, que nos olha do céu. Fora numa viagem a Londres, a negócios da empresa publicitária a qual trabalhara. Ah meu bem, dar-te-ia minha vida, só para vê-las juntas. Desculpem-me leitores, por umedecer essas folhas de caderno, é um sentimento incontrolável. Perdoem minha fraqueza.

Natália convivera comigo por curtos três anos, porque meu ex-sogro achou “por bem” tirá-la de mim. Eu não tinha recursos financeiros, ao contrário do avô de Natália. Hoje sofro sem minha pequena, apenas vejo pequenas lembranças como o álbum de fotos, nós três sorridentes: Natália, Eleonora e eu. Pontadas e mais pontadas que nunca acaba, cada vez que vejo as imagens dessas duas santas. Não sei se é normal sentir tal sentimento, ou se é mesmo o princípio de loucura que me afeta.

A única coisa que me restou foi o pequeno Rex, um vira lata que encontrei na rua. Rex agora é o meu único amigo, já que moro sozinho no interior. Os poucos momentos de felicidades que tenho, é sempre com ele; porém, não supera de longe a ausência da minha Natália.

Numa ocasião, estava a beira do igarapé, vendo o tremular das águas levando algumas pétalas de rosa desatadas por mim. Eu apenas via minha imagem distorcida misturada com o azul do céu e poucas nuvens; todavia, era impossível esquecer a dor, de ter que viver bem longe de Natália. Queria entender por que as pessoas tiram a felicidade de outras em troca de capital, ignorando o amor paterno. Vi ali toda a minha fé “cair” no riacho e desaguar cachoeira a baixo, mostrando-me claramente que nem tudo que queremos depende de crenças, e sim de nós mesmos. Sentei a beira do riacho, pus a cabeça entre os joelhos, solucei ainda mais forte.

Senti algo úmido e quente tocar meu rosto, era o meu único amigo naquele momento de tristeza sem fim: Rex. Ergui-me com espanto, mas, vendo o pobre cãozinho, senti que aquele animal queria me confortar de alguma forma. Retribui com um leve afago em sua cabeça, e ele “agradeceu” abanando o rabo e erguendo as orelhas.

Após três meses, Rex veio a falecer, e com aquele animal se foi minha felicidade. Pus-me a choramingar pelos cantos do mundo, procurando respostas para minha dor incurável; e percebi que não iria encontrar a cura tão cedo. Por que os Deuses me condenam? Por que tive tantas perdas em tão pouco tempo? Não me lembro de nenhum pecado, e muito menos de promessa não-cumprida.

Três anos mais tarde, conheceria Christina, minha namora de Faculdade. Vivíamos a mais perfeita felicidade, num ambiente livre e harmônico. Contei pra ela toda a minha dor nesses últimos meses, compreendeu-me perfeitamente, prometendo ser fiel a mim até o fim da sua vida.

Christina foi meu berço, sentia-me como se estivesse no colo da minha querida mamãe, que Deus a tenha.

Dois anos depois.

Uma carta chega com urgência. Era da empregada do meu ex-sogro, que tinha a mim como destinatário. Abri-a levemente, e vi que estava escrita era de caneta preta, provavelmente bic. Tinha uns garranchos, mas dava para compreender perfeitamente a mensagem. Desdobrei o papel, e iniciei a leitura: “Caro senhor Tavares, o Dr. Tácio Braga faleceu nesta manhã de terça-feira, 18 de setembro de 2009. Como a pequena Natália é sua filha e única parente do falecido, solicitamos sua presença ao enterro do nosso patrão. Atenciosamente Larissa”.

-Aí meu Deus! Vou poder ver minha filha novamente! Obrigado meu senhor! Estou tão feliz!

Pus-me a desaguar em prantos sobre uma pequena mesa de centro, soluçando cada vez mais forte. Christina veio até mim, e consolou-me amavelmente. Quando achei que tudo estava perdido, veio esta mensagem de “esperança”; provando-me que eu estava errado.
No dia seguinte, após longos três anos sem poder ver minha filha, enfim pude abraçá-la:

-Minha fofa...

-“Bai...”

Ouvir a voz suave de Natália ecoar agradavelmente em meus ouvidos, era tudo, tudo que faltava para a minha felicidade incompleta; que se contemplava neste momento. Christina olhava-nos com alegria, e não se contendo veio nos abraçar também. Larissa observava-nos de longe com um leve sorriso, lembrando-nos do enterro. Desculpamos-nos.

Foi tudo muito rápido no cemitério São João Batista, na zona sul, no bairro de Botafogo, havia menos de 30 pessoas, Tácio tinha poucos amigos. O seu único companheiro mesmo era apenas o dinheiro, não dava a mínima atenção para Natália. Tirou-a de mim só por prazer, só para ver meu sofrimento interminável. Não desejava sua morte, porém, não posso ser hipócrita; e confesso: chegou na hora certa. Perdoe-me Deus, por este pensamento diabólico, mas foi o que senti naquele momento.
Antes de sair, fui até a catacumba de Eleonora, vê-la mais uma vez. Christina apalpava meu rosto, enquanto Natália, ainda sem compreender o significado da morte, brincava inocentemente em volta do túmulo da mãe, correndo atrás das pombinhas, como se estivesse num parque de diversões. Pus um buquê de flores, e junto delas, uma velha foto da nossa união matrimonial. Ainda era dia, o sol mal despertava detrás das montanhas da Urca, e deixamos aquele local que me trás boas lembranças; por mais que seja medonho.

Já no trânsito, quando íamos para Copacabana, minha princesinha pergunta-me; sempre com a voz arrastada:

-“Bai”, “gadê” o Rex?

-Filha – disse pegando-a no colo – Rex tá no céu, foi brincar com Deus.

-Mas... Eeeu “guero” “bringar” “gom” ele...

-Olha meu bem – disse já com o coração partido – quando papai do céu chama, é pra sempre.

Natália fez cara de choro, e não demorou muito para os seus olhinhos cor de café se transbordarem. Doía mentir para minha pequena, mas era necessário. Por mais que eu dissesse a verdade, ela jamais entenderia. Ela tem apenas seis primaverinhas.

-Chegamos – disse Christina, estacionando o carro bem próximo da orla.

Caminhamos em direção a o mar que estava bem manso, porém, a sujeira na areia era lamentável. Sentamo-nos num quiosque, bem próximo a estátua de Carlos Drummond de Andrade, pedimos água de coco. Natália me preocupava, ainda estava triste com a ausência de Rex; fui até ela:

-Vem com papai. Tá vendo aquela nuvenzinha lá, perto da gaivota? É o Rex, ele está de olho em você.

-É?

-É sim. E sabe o que ele disse antes de partir?

-Não. O “gue” ele disse “babai?”

Abri um sorriso, vi que estava no caminho certo; e disse:

-Pra você ser forte meu bem! Pra você cuidar do papai, que precisa e muito de você.

-Ele vai ficar com a mamãe?

-Sim filha, Rex foi encontrar mamãe, e pediu pra você ficar aqui comigo ta? Senão papai fica dodói. Se você for, quem vai dar o beijinho no papai pra sarar? Hã? Filha, Christina pode ser sua mamãe?

-“Bode”.

-Ai que fofa... – disse Christina, brotando-lhe duas lágrimas de alegria.
Após todos esses tormentos, longos anos se passaram. Minha filha continua linda, e segue firme na faculdade, decidiu ser veterinária. Já eu e Christina, vivemos da renda dos nossos imóveis, aqui mesmo na zona sul, e sempre que podemos, visitamos crianças com câncer no INCA (Instituto Nacional do Câncer), e levamos alguns brinquedos. Agora é quase impossível de nos reencontrarmos como nos velhos tempos, devido a vários contratempos, como o emprego de Natália, no Pet Shop, e a nossa idade: refiro a mim e Christina.

Quando a maré baixar, vamos fazer como nos velhos tempos: reunir toda família, como já foi em outrora, e relembrando as melhores lembranças dos nossos entes queridos. Enquanto esse momento não chega, fico da sacada, olhando o imenso oceano, vendo as ondas se chocar nas rochas do Forte de Copacabana...

3 comentários:

Kimura disse...

Fala mulekao blz?
Tenho dois prêmios para repassar. E um dos blogs a quem ofereço, é claro, ao seu.
Espero que aceite e que goste, é de coração.
VEM BUSCA-LOS!! rsrsrs...
Parabéns brow!!

Vandinha disse...

Faz tempo que não apareço por aqui, mas sei que aqui encontro bons textos e fiquei feliz com esse final, que tbém é feliz.
Beijos Sanderson, estava com saudades.

Sanderson Vaz Dutra disse...

Mais uma vez, gratíssimo pela sua visita e pela leitura Vandinha. Muito obrigado pela força. Eu também estou com saudades dos seus textos, mas quando surgir um novo, saberei porque estou sempre visitando o seu blog.