sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

"O Reencontro" - o último capítulo dos contos: "O Amor Ainda Existe" e "O Amor não Existe mais"

O campo agora era outro. Aromático, limpo, colorido e totalmente puro... Os ruídos deste campo eram fabulosos como uma canção de harpa, dedilhada por dedos femininos, suaves e quentes. O que se via agora era apenas a pureza da flor, das águas e das ninfas... O ar era tomado por uma tempestade de pétalas, que vagavam no ar como flocos de algodão.

Na terra fértil, flores e mais flores tremulavam com o delicado toque dos zéfiros. Ao profundo “infinito” da natureza, um pequeno lago transparente tremulava pequenas ondas com os passeios dos cisnes. A qualidade incolor da água permitia ver os peixes a olhos nus, que pulavam graciosamente de encontro à superfície; tal proeza que não se vê em qualquer lugar no mundo.

O pequeno Beija-flor se encanta com o novo mundo, repleto de belezas infinitas e castelos mitológicos. Seria o lendário Campos Elíseos? Ou apenas um mundo pós-Terra, para onde vão os não-pecadores?

Abre-se um horizonte verde, repleto de relevos equidistantes e algumas planícies. Num voo rasante, desce para matar a sede que o consumia; para repor as energias e reencontrar a mesma bela Flor, da qual se alimentara de seu néctar em outrora.
Sobrevoando o “novo paraíso”, via pedaços de algodões planarem rasantes, que se desprendiam das gigantescas árvores centenárias. A fauna acordava alegre; era visível isso claramente nos micos leões dourados, voando nos galhos tênues da savana divina.

Enfim, o astro rei surge discretamente, com seus raios dourados e penetrantes tocando o solo; atravessando as nuvens. Pequenas partículas de água, vindas das enormes cascatas celestiais, iluminadas pelo sol, evaporam-se no ar, resfriando o clima na região sagrada; criando o belíssimo arco-da-velha.

Num campo límpido próximo ao lago, flores rasteiras eram contempladas pelas borboletas, que brincavam alegres no parque natural. O Beija-flor voara talentosamente entre as borboletas; que congestionavam o caminho. Bailava no ar com delicadeza, graciosamente, tentando encontrar a Flor amada.

Não obstante, o clima mudou rapidamente. As nuvens rasteiras que ondulavam as montanhas aterrissavam o campo, cobrindo o sol pela metade. O pequenino Beija-flor refugiou-se para um galho duma pitangueira, e ali ficou. O céu chorava angelicalmente, com pequenos raios de luz, dando um toque colorido e divinal.
O pequeno príncipe de asas olhava para o céu manso, embora chuvoso. As gotas de prata banhavam-lhe o corpo como um calmante; e consequentemente diminuía sua angustiosa busca pela Flor desejada. O tempo intensificou-se ainda mais.
Relâmpagos clareavam os relevos opacos devido às sombras das nuvens negras, que vinham acompanhadas de raios e ventos moderados; o dia virou noite. O cheiro de água fresca era agradável, principalmente para as plantas, que esperavam por esse “banho divino”. O Beija-flor se sacolejava num galho tênue, esperando apenas o pequeno dilúvio passar.

O pequeno rio desaguava no lago a água da chuva, que descia tranquila e transparente. A tempestade diminuía rapidamente, as nuvens carregadas abriam caminho para o astro rei iluminar novamente a natureza; enquanto a leve brisa levava três folhas mortas. Os sapos saíam do lago para tomar ar, outros animais surgiam das tocas, era o fim da tempestade.

No topo das montanhas, em meio às rochas e a vegetação, uma linda Flor de beleza ímpar, cor azul e um perfume excepcional tremulava solitária em meio à neblina. Vivia isolada neste novo mundo, sem o seu amado Beija-flor. Foram muitos dias de solidão infinita. Sentia-se insegura, não podia se defender dos predadores naturais; esperava apenas a morte. Porém, nunca perdera as esperanças de reencontrá-lo.
Quando os raios do sol tocaram as montanhas, a sombra do Beija-flor, que parecia surgir do sol, lhe cobria por inteira. Enfim, após longos e longos dias, acontece “o reencontro”. Pode enfim degustar do néctar, se perder nas folhas perfumadas. Era o início de uma nova era, nasceria naquele local sublime “o mundo perfeito”; sem a presença do homem.

Seis meses depois, a Flor morre naturalmente, porém, suas folhas serviram de acalanto para o Beija-flor. Construiu um ninho, para abrigar seu filhote, fruto de um novo amor platônico que surgira casualmente; do mesmo modo que ocorrera com o seu primeiro grande amor: a bela Flor de folhas azuis...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Um Dia Antes da Morte"

Estar num leito de hospital sabendo que você tem apenas vinte e quatro horas de vida não é fácil. Por isso resolvi desobedecer às orientações médicas e passear pela cidade.

De que adianta de tanto dinheiro, sabendo que morrerei em menos de vinte e quatro horas, de uma doença rara que a medicina não conseguiu identificar?
Quero ao menos ver as coisas belas que cercam este meu pequeno mundo antes de morrer, ver este jardim repleto de flores e as crianças nadarem no lago, olhar o palhaço tirando um sorrido de uma menina pobre, solitária num canto, numa situação incomum diante das outras. Chamei-a para um passeio, aliás, meu último passeio.
No meio do caminho, comprei dois sorvetes, o meu era de creme, o dela de morango. Por curiosidade, perguntei:

-Por que você está sozinha? Quantos anos você tem?

-Eu não tenho família. Vivo nas ruas. Tenho oito anos.

-Você tem parente?

-Não.

Abri um leve sorriso, vi que antes da minha morte poderia fazer alguém feliz:

-Você quer ter uma família? Tenho uma filha maravilhosa que pode ser sua irmã.

-Então o eu vou ganhar uma irmã? O senhor vai ser meu papai?

Estas últimas palavras foram dolorosas:

-Eu queria filha, mas não posso.

-Por que não.

Nossa! A curiosidade das crianças parecem não ter limites:

-Porque o papai do céu “tá” lá encima me esperando.

-Então eu vou com você. Quero conhecer o papai do céu.

Eu não esperava palavras sentimentais tão fortes de uma menina de oito anos, confesso que daria qualquer coisa para ver o futuro dela:

-Escute querida – enxuguei uma das lágrimas, e continuei: – qual o seu nome?

-Sabrina.

-Que nome bonito! Eu me chamo Alberto. Sabrina, papai do céu me chamou porque ele quer que eu more nas nuvens. Ainda está muito cedo para você conhecer o papai do céu.

-Mas eu queria ver ele. Minha amiga me disse, que a mamãe e o papai estão lá. Eu quero ver o papai e a mamãe.

É duro mentir para as crianças, mas é necessário:

-Está vendo aquela nuvenzinha lá no céu? Seus pais estão lá de olho em você, e me pediu para levar você para passear. Lembra do sorvete de morango? Foi mamãe que mandou comprar pra você. O papai pediu que eu te desse uma família. Você quer ter irmã e mãe?

Sabrina olhou-me desconfiada, mas aceitou.

-Quero.

-Vamos tomar um banho quando chegarmos a sua casa nova. Lá tem muitos brinquedos.

-Oba!

Atravessei à principal e entramos no apartamento. O relógio de ponteiro do Francisco marcava 18h30min, restava-me apenas seis das minhas 24h. A porta estava aberta, todos estavam preocupados pelo meu sumiço:

-Pai! Estávamos preocupadas! Por onde o senhor andou?

-Estava cuidado desta menininha Sara, onde está a Laura?

-No quarto. Quem é esta menina?

-É uma curta história. Chame sua mãe Sara, quero conversar com vocês...

-Alberto! Por onde andou? Procurei-te no hospital o dia inteiro! Quem é esta anjinha? – perguntou enfim Laura, acariciando os cabelos da menina?

-Sabrina, nossa nova princesinha.

-Ai que gracinha! Vem cá, vou te dar um brinquedinho – Sara levou Sabrina até o quarto, deixando a sóis Laura e Alberto.

-Só tenho mais quatro horas e meia de vida. Quero lhe fazer um último pedido Laura.

-Claro meu amor! Qual?

-Quero que cuidem dessa menina como se ela fosse nossa segunda filha. Vocês (Laura e Sara) têm que conhecê-la! Ela é uma criança maravilhosa! Sabe Laura, por alguns momentos esqueci até que tinha apenas algumas horas de vida.

-Você e sua sensibilidade hein – brincou Laura.

-É. As mentes das crianças são incríveis! Parecem estar mais evoluídas!

-Elas são mais espertas Alberto, não são como outrora.

-Como queria ter conhecido antes a Sabrina! Bem, já estou indo...

-Espera Alberto! Não vai se despedir das meninas?

-Claro meu bem, mas não sei se terei forças para suportar.

Já estava respirando com dificuldades, porém, fiz um esforço para esconder tudo delas. Subir os degraus foi um martírio, algo tão simples tornou-se um inferno. A porta do quarto estava encostada, Sara lia um livro de contos para prova da faculdade, e Sabrina dormia como uma princesinha:

-Sara.

Era a última vez que falava com minha filha, vi a tristeza através dos seus olhos.

-Pai...

Doeu demais ver Sara aos prantos diante dos meus olhos, fato tão forte que tirou lágrimas de Laura. A duas abraçaram-me forte, beijaram meu rosto diversas vezes. Era o que precisava para encarar a morte: calor humano. Surpreendentemente, sinto uma pequena criatura abraçar minhas pernas. Adivinha quem era? Sabrina. Desatei por uns segundos de Laura e Sara, e peguei Sabrina no colo e disse:

-Sabrina, eu sou o seu anjo da guarda! Vou voltar para junto dos seus pais. A Laura será a sua mamãe, e a Sara a sua irmã. Promete respeitá-las?

-Prometo.

-Lembra daquela nuvenzinha que vimos hoje?

-Lembro.

-Pois é? Amanhã estarei lá. Escute Sabrina: vou morar no céu, mas você tem que prometer não chorar tá?

-Tá... Mas vou sentir sua falta.

-Eu também vou sentir sua falta. Seja forte! Você tem que cuidar da Sara e da Laura! Principalmente da Laura. Adeus minhas princesas. Estarei naquela nuvem branca Sabrina! Se quiser falar comigo, converse com as aves, que irão voar até lá só para levar sua mensagem.

Dei um beijo de despedida em cada uma delas, e voltei para o hospital. Até que o último dia antes da minha morte não foi ruim, adorei conhecer Sabrina, a pureza da criança é mesmo um mistério! Que lugar triste! Está tão escuro... Acho que chegou a hora... A hora da minha morte.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Natália

Minha vida mudou depois que minha princesinha veio ao mundo. Natália, minha primeira e única filha é portadora de Síndrome de Down, distúrbio genético, mongolismo, que afeta parcialmente algumas pessoas. Eis a minha coisa fofa, minha razão de viver, após um trágico acidente aéreo que levara minha esposa Eleonora, que nos olha do céu. Fora numa viagem a Londres, a negócios da empresa publicitária a qual trabalhara. Ah meu bem, dar-te-ia minha vida, só para vê-las juntas. Desculpem-me leitores, por umedecer essas folhas de caderno, é um sentimento incontrolável. Perdoem minha fraqueza.

Natália convivera comigo por curtos três anos, porque meu ex-sogro achou “por bem” tirá-la de mim. Eu não tinha recursos financeiros, ao contrário do avô de Natália. Hoje sofro sem minha pequena, apenas vejo pequenas lembranças como o álbum de fotos, nós três sorridentes: Natália, Eleonora e eu. Pontadas e mais pontadas que nunca acaba, cada vez que vejo as imagens dessas duas santas. Não sei se é normal sentir tal sentimento, ou se é mesmo o princípio de loucura que me afeta.

A única coisa que me restou foi o pequeno Rex, um vira lata que encontrei na rua. Rex agora é o meu único amigo, já que moro sozinho no interior. Os poucos momentos de felicidades que tenho, é sempre com ele; porém, não supera de longe a ausência da minha Natália.

Numa ocasião, estava a beira do igarapé, vendo o tremular das águas levando algumas pétalas de rosa desatadas por mim. Eu apenas via minha imagem distorcida misturada com o azul do céu e poucas nuvens; todavia, era impossível esquecer a dor, de ter que viver bem longe de Natália. Queria entender por que as pessoas tiram a felicidade de outras em troca de capital, ignorando o amor paterno. Vi ali toda a minha fé “cair” no riacho e desaguar cachoeira a baixo, mostrando-me claramente que nem tudo que queremos depende de crenças, e sim de nós mesmos. Sentei a beira do riacho, pus a cabeça entre os joelhos, solucei ainda mais forte.

Senti algo úmido e quente tocar meu rosto, era o meu único amigo naquele momento de tristeza sem fim: Rex. Ergui-me com espanto, mas, vendo o pobre cãozinho, senti que aquele animal queria me confortar de alguma forma. Retribui com um leve afago em sua cabeça, e ele “agradeceu” abanando o rabo e erguendo as orelhas.

Após três meses, Rex veio a falecer, e com aquele animal se foi minha felicidade. Pus-me a choramingar pelos cantos do mundo, procurando respostas para minha dor incurável; e percebi que não iria encontrar a cura tão cedo. Por que os Deuses me condenam? Por que tive tantas perdas em tão pouco tempo? Não me lembro de nenhum pecado, e muito menos de promessa não-cumprida.

Três anos mais tarde, conheceria Christina, minha namora de Faculdade. Vivíamos a mais perfeita felicidade, num ambiente livre e harmônico. Contei pra ela toda a minha dor nesses últimos meses, compreendeu-me perfeitamente, prometendo ser fiel a mim até o fim da sua vida.

Christina foi meu berço, sentia-me como se estivesse no colo da minha querida mamãe, que Deus a tenha.

Dois anos depois.

Uma carta chega com urgência. Era da empregada do meu ex-sogro, que tinha a mim como destinatário. Abri-a levemente, e vi que estava escrita era de caneta preta, provavelmente bic. Tinha uns garranchos, mas dava para compreender perfeitamente a mensagem. Desdobrei o papel, e iniciei a leitura: “Caro senhor Tavares, o Dr. Tácio Braga faleceu nesta manhã de terça-feira, 18 de setembro de 2009. Como a pequena Natália é sua filha e única parente do falecido, solicitamos sua presença ao enterro do nosso patrão. Atenciosamente Larissa”.

-Aí meu Deus! Vou poder ver minha filha novamente! Obrigado meu senhor! Estou tão feliz!

Pus-me a desaguar em prantos sobre uma pequena mesa de centro, soluçando cada vez mais forte. Christina veio até mim, e consolou-me amavelmente. Quando achei que tudo estava perdido, veio esta mensagem de “esperança”; provando-me que eu estava errado.
No dia seguinte, após longos três anos sem poder ver minha filha, enfim pude abraçá-la:

-Minha fofa...

-“Bai...”

Ouvir a voz suave de Natália ecoar agradavelmente em meus ouvidos, era tudo, tudo que faltava para a minha felicidade incompleta; que se contemplava neste momento. Christina olhava-nos com alegria, e não se contendo veio nos abraçar também. Larissa observava-nos de longe com um leve sorriso, lembrando-nos do enterro. Desculpamos-nos.

Foi tudo muito rápido no cemitério São João Batista, na zona sul, no bairro de Botafogo, havia menos de 30 pessoas, Tácio tinha poucos amigos. O seu único companheiro mesmo era apenas o dinheiro, não dava a mínima atenção para Natália. Tirou-a de mim só por prazer, só para ver meu sofrimento interminável. Não desejava sua morte, porém, não posso ser hipócrita; e confesso: chegou na hora certa. Perdoe-me Deus, por este pensamento diabólico, mas foi o que senti naquele momento.
Antes de sair, fui até a catacumba de Eleonora, vê-la mais uma vez. Christina apalpava meu rosto, enquanto Natália, ainda sem compreender o significado da morte, brincava inocentemente em volta do túmulo da mãe, correndo atrás das pombinhas, como se estivesse num parque de diversões. Pus um buquê de flores, e junto delas, uma velha foto da nossa união matrimonial. Ainda era dia, o sol mal despertava detrás das montanhas da Urca, e deixamos aquele local que me trás boas lembranças; por mais que seja medonho.

Já no trânsito, quando íamos para Copacabana, minha princesinha pergunta-me; sempre com a voz arrastada:

-“Bai”, “gadê” o Rex?

-Filha – disse pegando-a no colo – Rex tá no céu, foi brincar com Deus.

-Mas... Eeeu “guero” “bringar” “gom” ele...

-Olha meu bem – disse já com o coração partido – quando papai do céu chama, é pra sempre.

Natália fez cara de choro, e não demorou muito para os seus olhinhos cor de café se transbordarem. Doía mentir para minha pequena, mas era necessário. Por mais que eu dissesse a verdade, ela jamais entenderia. Ela tem apenas seis primaverinhas.

-Chegamos – disse Christina, estacionando o carro bem próximo da orla.

Caminhamos em direção a o mar que estava bem manso, porém, a sujeira na areia era lamentável. Sentamo-nos num quiosque, bem próximo a estátua de Carlos Drummond de Andrade, pedimos água de coco. Natália me preocupava, ainda estava triste com a ausência de Rex; fui até ela:

-Vem com papai. Tá vendo aquela nuvenzinha lá, perto da gaivota? É o Rex, ele está de olho em você.

-É?

-É sim. E sabe o que ele disse antes de partir?

-Não. O “gue” ele disse “babai?”

Abri um sorriso, vi que estava no caminho certo; e disse:

-Pra você ser forte meu bem! Pra você cuidar do papai, que precisa e muito de você.

-Ele vai ficar com a mamãe?

-Sim filha, Rex foi encontrar mamãe, e pediu pra você ficar aqui comigo ta? Senão papai fica dodói. Se você for, quem vai dar o beijinho no papai pra sarar? Hã? Filha, Christina pode ser sua mamãe?

-“Bode”.

-Ai que fofa... – disse Christina, brotando-lhe duas lágrimas de alegria.
Após todos esses tormentos, longos anos se passaram. Minha filha continua linda, e segue firme na faculdade, decidiu ser veterinária. Já eu e Christina, vivemos da renda dos nossos imóveis, aqui mesmo na zona sul, e sempre que podemos, visitamos crianças com câncer no INCA (Instituto Nacional do Câncer), e levamos alguns brinquedos. Agora é quase impossível de nos reencontrarmos como nos velhos tempos, devido a vários contratempos, como o emprego de Natália, no Pet Shop, e a nossa idade: refiro a mim e Christina.

Quando a maré baixar, vamos fazer como nos velhos tempos: reunir toda família, como já foi em outrora, e relembrando as melhores lembranças dos nossos entes queridos. Enquanto esse momento não chega, fico da sacada, olhando o imenso oceano, vendo as ondas se chocar nas rochas do Forte de Copacabana...

domingo, 24 de janeiro de 2010

"Amor e Crime"

Amor e Crime




–Traga a farofa Raimundo – disse um dos fregueses.


–Está pronta João! – respondeu ao cliente – Vai uma caracu pra acompanhar caboclo?


–Sim! Coloque quatro ovos de codorna.


–Está bem. E você Walmir? O que vai querer? – perguntou Raimundo.


–Frango empanado com salada. E traga um guaraná natural e um copo com duas pedras de gelo –

disse Walmir limpando os talheres com guardanapo.


–Osmar! – bradou Raimundo na parte central do restaurante; enquanto recolhia os pratos usados por outros fregueses – Prepare um frango empanado no capricho pro nosso amigo Walmir.


–Sim senhor – respondeu Osmar, esticando o pescoço da pequena janela da cozinha do restaurante.


João comentava com Walmir, sobre uma secretária do doutor Pereira, que estava na empresa apenas duas semanas, e já estava ganhando à “confiança” do patrão:


–Agora “cê” vê meu amigo! Nós que “trabalha” há oito anos, não ganhamos nadinha de aumento – disse João.


–É moça bonita cabra! Aqui no Rio de Janeiro tem dessas coisas - respondeu Walmir. – É “troca de favores” homem!


Ambos pararam de falar por alguns instantes.


Ao fundo, surge Raimundo, com uma enorme bandeja de alumínio, trazendo a refeição de ambos:


–Prontinho – disse o homem colocando os pratos sobre a mesa – Já lhes trago a caracu e o guaraná João e Walmir.


–Tudo bem, nós esperamos – responderam ambos.


Walmir secava os talheres com papel toalha, enquanto João destroçava furiosamente um pedaço de carne-seca. Derramava o azeite português com graça sobre a salada fresca; que estava muito bem preparada por sinal. O caldo do feijão estava perfeito, inigualável, num toque impecável de alho roxo e pimenta do reino! A cada colherada dada por João, ouvia-se perfeitamente o tilintar do metal com os dentes; fato que incomodava e muito Walmir, porque tivera educação refinada; apesar de ser um homem de “baixa renda”.


Raimundo voltava nesse instante, trazendo uma linda taça cristalina, com o escudo do Flamengo na parte frontal, a servir a caracu de João, que o agradeceu com um simples gesto de cabeça; já que mastigava de boca aberta e cheia de farofa.


Walmir, mesmo com o uniforme da empresa de limpeza envergonhava-se ao comer com João. O diabo do homem parecia um porco no restaurante, só que, este porco tinha faca e colher. O indivíduo arrotara diversas vezes, como se fosse normal num local de respeito e extrema educação.


Perdendo a paciência, Walmir diz:


–O rapaz! Comporte-se! O prato não vai criar pernas e fugir não – disse Walmir.
João apenas olhava-o atônito, pasmado, porque nunca viu o amigo agir dessa maneira. O pobre homem ficara envergonhado, temia levar a colher novamente até a boca, com medo de ser novamente repreendido pelo amigo.


Walmir, vendo o constrangimento que causara ao amigo arrependeu-se:


–Desculpe-me João, fui muito arrogante contigo meu amigo. Nunca mais farei isso novamente – disse Walmir, mostrando claramente o arrependimento; pondo as mãos nos ombros do amigo.


–Tudo bem amigo – disse João, erguendo novamente a colher até a boca, e voltando a comer como dantes.


Tudo parecia estar tranqüilo agora, mas, eis que, repentinamente, surge o doutor Pereira e Laura; ambos de mãos dadas e sorridentes.


Vendo-os pelo reflexo do espelho do restaurante, Walmir diz em voz baixa:


–Olha que está aqui... Psiu! Disfarce.


João ainda olhava para o prato, mas logo vê a cena:


–Não morrem tão cedo... Escute: vamos filmar esse encontro!...


–Que ótima ideia!... – disse Walmir, puxando do bolso um aparelho celular.


–Vamos pegá-los com a boca na botija! – disse João eufórico.


Walmir pusera o aparelho de lado sobre a mesa, para não perder nenhum detalhe do encontro secreto. A câmera já estava ligada e, para sorte do homem, a bateria estava totalmente carregada. Tinha espaço o suficiente no cartão de memória; mais ou menos um giga e meio; já que o restante do espaço era ocupado por músicas, jogos e fotos.


Dr. Pereira e a secretária olhavam o cardápio, enquanto um garçom deixava-lhes de antemão, duas tigelas de pudim.


Walmir olhava pela tela do aparelho inconformado, e claro que, automaticamente se perguntou: “por que não ganhamos sobremesa?”. Porém, estava tão concentrado em obter informações, que não fizera questão de questionar o garçom.


Dr. Pereira deslizava livremente sua mão esquerda em uma das pernas da jovem, bem próximo a parte genital, enquanto na parte superior, usava os lábios para sentir seu gosto; era tudo que os pobres homens precisavam.


Raimundo vem com duas bandejas enormes, enquanto outro garçom trazia uma garrafa de vinho gaúcho; que vinha protegido numa enorme jarra de alumínio com gelo.


No visor do aparelho do Walmir, já havia seis minutos de filmagem, o suficiente para mudar de vez a vida de ambos. Parece pouco? Não! Para eles já é uma “gloria”!


Um sujeito adentra violentamente no restaurante, chamando a atenção de todos. Estava engravatado, bem vestido; porém, com o demônio nos olhos e no restante do corpo. Fora em direção ao Dr. Pereira e a secretária, e sacara rapidamente uma pistola cromada à prata; descarregando-a todos os projéteis nas vítimas. As capsulas voavam aleatoriamente; como “milhos de pipocas!” Ambos não tiveram tempo de reação; foram perfurados cruelmente pelas balas da arma de prata.


Já não havia mais ninguém no restaurante, somente as mesas e cadeiras reviradas, durante a correria.


O homem permanecia de pé, com a arma em punho para baixo, que ainda chorava fumaça de pólvora.


Não obstante, apontara a arma para cabeça, e sem temer a própria vida puxou o gatilho. No primeiro instante falhara; porque não havia mais munição. Pusera a mão no bolso, colocara um cartucho cheio, e em seguida, efetuou o disparo, aumentando ainda mais o número de vítimas fatais. No seu rosto, agora ensangüentado, via-se uma lágrima morta, que rolara até o chão empoçado de sangue.

O que presenciara a cena de brutalidade fora o celular, que permaneceu intacto, filmando toda a cena do crime bárbaro; esclarecido horas depois pela polícia.


O homem que matara o empresário era o namorado de Laura, que não aceitava a separação. Carlos, que era um jovem empresário, encontrara em Laura a essência do amor; o reinício do mundo, a “magia” das coisas!


Enfim, aprendera a amar, e amou tanto, que fora capaz de cometer este lamentável ato de loucura...